Alguém se lembra dos ecochatos? Aqueles bicho-grilos falantes e
indiferentes à urgência do progresso que se amarravam em jequitibás para
trancar a passagem da civilização sobre a natureza? Pois é. Durante
anos, bastava alguém levantar qualquer objeção à impunidade de tratores e
serra-elétricas para ser desautorizado: você é “só” um ecochato. Logo,
não merecia ser ouvido. E por não ter sido ouvido, durante anos, os
modelos de exploração, consumo e descarte seguiram inalterados, às
custas da destruição de matas ciliares, poluição de rios e extermínio
das espécies.
Com o tempo, a ciência conseguiu ligar os pontos
entre a devastação humana e os desastres supostamente naturais.
Aprendemos, aos trancos, que o barranco desmatado de ontem é a área de
deslizamento de hoje. Que o buraco devastado na floresta distante é o
alçapão dos chamados rios voadores, estes que hoje minguam em nosso
jardim, nossas áreas produtivas e nosso sistema de abastecimento. Que a
emissão desregrada de CO2 é o tampão da panela de pressão a derreter
calotas, elevar o nível dos rios, colocar em risco as populações
litorâneas com ondas do tamanho de edifícios.
Pois é. A evolução
cientifica serviu também para devastar o deboche. Os ecochatos de ontem
são hoje chefes de Estado sentados à mesa em busca de uma solução para
evitar o colapso.
Enquanto nem tudo se perde, a lição serve como
uma esperança. Pois se tem algo positivo de ser adolescente em 2014 e
não em 1984 é que, graças à nossa conexão em rede, os canais de
informação se multiplicaram. Já não dependemos das vozes oficiais para
ouvir, para aprender nem para nos divertir. Nesse novo mundo, os filhos
já não se contentam com o “porque sim”, “porque é certo”, “porque sempre
foi assim” do padre, da nona ou da TV aberta. Basta uma combinação
bem-feita no Google para rebater, com fotos e dados, muitos dos
lugares-comuns repetidos há séculos pelos velhos papagaios: não existe
latifúndio no Brasil, não existe devastação, o mundo não está mais
quente, a cidade está mais segura, o presidente sabe o que faz, negros e
gays não se ofendiam com as piadas de antigamente.
É um efeito
natural: quanto mais informação, maior o espírito crítico, maior a
gritaria. Maior, também, a reação à gritaria. Dessa forma, os chamados
“politicamente corretos” se tornaram os novos “ecochatos”: basta
levantar o dedo para dizer que piadas com minorias não têm a menor graça
para ouvir todo tipo de recriminação. “É só uma brincadeira”. “Você não
sabe o que é uma piada?”. “Você não tem humor”.
Exemplo disso
foi dado, no início da semana, por um dos principais ícones do humor
brasileiro. Em entrevista à revista Playboy, o ator e comediante Renato
Aragão se queixou da maldade nos olhos de quem vê maldade nas piadas que
o consagraram. "Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e
dos homossexuais, elas não se ofendiam. Elas sabiam que não era para
atingir, para sacanear".
Não vou ser malicioso e atribuir a um
suposto ato falho do Trapalhão a inclusão de negros e homossexuais na
categoria “dos feios”. Vou apenas questionar: será que negros e gays não
se ofendiam mesmo? Quem atestou? Quem mediu? Quem referendou? O
Datafolha? O disk Criança Esperança? Ou será que, sem os mesmos canais
de antes, a ofensa era apenas tolhida e pouco reverberada? Como medir o
alcance de uma ofensa em um mundo sem redes de relacionamento que hoje
unem ofendidos do Norte, do Sul e do Centro, antes espalhados e
desconectados, em uma mesma conversa? Será que hoje, ao saber que sua
ojeriza é compartilhada, o ofendido não se sinta estimulado a expressar o
que sente? Ou será que a queixa é apenas sintoma de uma geração
mal-acostumada que não têm boa vontade o suficiente para distinguir uma
piada de um tapa?
Bom, se valer o argumento do líder dos
Trapalhões, o tapa também já foi mais respeitado pelos antigos. Escravos
eram açoitados em praça pública e sempre levaram na boa – o silêncio da
focinheira era, assim, apenas um charme. Da mesma forma, gays eram
estapeados pelos pais dentro de casa até desentortar e não se ofendiam
com a ação enérgica. Pelo contrário: entravam na linha, seguiram o curso
da normatividade, se casavam com pessoas do sexo oposto e aceitavam ser
infelizes para sempre.
E hoje em dia? Hoje em dia, o tempo da
maldade, há inclusive leis para se punir surra corretiva dentro de casa.
Vai ver é por isso que, longe da correção, gays, lésbicas e travestis
tenham perdido a vergonha de sair à rua em passeatas para reforçar o
próprio orgulho.
Na cabeça dos antigos, ao menos os que ainda
pensam como em 1984 (ou seria 1884? Ou 1784?), o que falta a esses
grupos é vergonha, e a vergonha tem dois aliados inseparáveis: o tapa e a
piada. Ambos coram a pele. Ambos deixam marcas. Ambos servem para
colocar os diferentes “em seu devido lugar”. Antes bastava chamar de
bicha, bichinha, bichola. Ou de “pretis”. Ou dizer que “pretis é seu
passadis”. Ou que amanhã é dia de branco. Ou que o serviço ficou uma
pretice.
“Ah, mas o Mussum não ligava”. Pobre Mussum: em teu nome
quantas ofensas foram escancaradas e justificadas, estas sim sem a
menor vergonha? Pois, além de chorar, que outra opção deram a ele se não
ser sorrir. Sorrir como quem cala. Sorrir como quem escapa de um tapa.
Sorrir como quem adia o encontro consigo mesmo. Sorrir como riem os gays
quando ouvem, em casa ou no trabalho, as velhas piadas como uma ordem
para seguir quietos. Sorrir como a empregada ri da piada sem graça do
chefe machão para não perder o emprego. Sorrir em nome da convivência.
Em nome da própria vergonha. Sorrir – se possível, gargalhar.
Hoje
quem se importa com os séculos de exclusão e decide romper, com
protestos, o ciclo da ofensa do tapa e do riso é chamado de
“politicamente incorreto”. Ou – pasmem – de racista. É que para muitos a
maturidade não serviu para entender os contextos da própria
consagração. Pois é mais fácil trocar os nomes e substituir a
perversidade do passado por uma ingenuidade apunhalada apenas pelos
olhos de quem vê.
Na mesma entrevista, Aragão classificou as
piadas que hoje ofendem como “uma brincadeira de circo entre mim e o
Mussum, como se fôssemos duas crianças em casa brincando”. A intenção,
disse, não era ofender ninguém. “Hoje, todas as classes sociais ganharam
a sua área, a sua praia, e a gente tem que respeitar muito isso”. É
como dizer que a piada de português perdeu a graça porque o português
chegou à plateia.
Enquanto o respeito citado pelo comediante for
uma concessão a contragosto de quem sai de cena, ele será sempre um mal
necessário, e não um processo de entendimento. Esse processo demonstra
que a piada ofensiva não perdeu a graça porque o ofendido entrou em
cena. Perdeu porque os níveis de consciência afloraram. Porque o mundo
se transformou. Porque os símbolos ganharam novos significados. O riso é
um deles.
Por incrível que pareça, o mundo não ficou mais chato
por isso: muitos entenderam os novos tempos e decidiram refinar nosso
humor e, com ele, nossa própria compreensão do mundo. Ninguém perdeu com
isso, a não ser a velha chacota.